Mesmo que já estejamos vivendo o período da pós-modernidade, ainda mantemos parâmetros modernos concomitantemente. O livro Mito Moderno da Natureza intocada, de Diegues, que retrata os primórdios das áreas protegidas, ainda é muito atual em sua análise.
O livro apresenta a consolidação das primeiras unidades de conservação no mundo e como este modelo chegou ao Brasil, com características de conservação externas ao meio ambiente que existe aqui, ou seja, o tipo de unidade de conservação desenvolvida nos Estados Unidos e na Europa tinha como referência florestas que eram pouco habitadas, modelo que foi reproduzido no Brasil e em outros países, que possuem em suas matas grande variedade de comunidades tradicionais, indígenas, ribeirinhas, dentre outras tantas.
Estes povos da floresta foram e são tolidos de suas práticas tradicionais, quando não expulsos de suas terras, que detém não só a extensão de espaço de trabalho e reprodução, como também de ancestralidade e cultura.Este modelo, apesar de já ter caído por terra, principalmente pela construção dos ideiais preservacionistas frente aos conservacionistas e visível em novas modalidades de unidades de conservação, como as reservas extrativistas e de uso sustentável que, dentre outras características, permite a presença das comunidades existentes anteriormente sob uma rígida cartilha normativa, ainda não foi amplamente aplicado na prática.
O exemplo da Ilha do Cardoso é contundente: localizada sul do estado de São Paulo, na ilha estão presentes comunidades de origem caiçara que ocupam a área há bastante tempo, anterior a 1962, quando foi criado o Parque Estadual da Ilha do Cardoso – PEIC. Em um trabalho de campo que fiz em 2005, verifiquei junto aos moradores da ilha a presença do mito moderno de natureza intocada, quando a reprodução deles foi limitada.
Segundo os moradores, novas áreas de residência e cultivo não podem ser abertas na ilha pelos descendentes, já que o direito de uso está restrito aos primeiros residentes, fichados durante os levantamentos dos técnicos responsáveis pela ilha. Assim, a manutenção e reprodução física e cultural da comunidade com um todo, ficou limitada a um espaço insuficiente para toda a família, o que forçou os filhos e netos a se deslocarem principalmente para Cananéia, local este urbanizado e distante do modo de vida mantido na Ilha do Cardoso.
Além disso, suas práticas culturais foram limitadas pela nova legislação do PEIC, comumente organizada de cima para baixo. A retirada da mata da um tipo específico de madeira, a caixeta, foi proibida, no entanto, era justamente essa madeira a necessária para fabricação da viola caiçara e da canoa típica. Sem falar nas proibições e limitações que se repetem em outras unidades de conservação, como a caça e a pesca.
Naturalmente, estas comunidades caiçaras se adaptaram. A caixeta foi substituída por outra madeira menos resistente e que não produzia o mesmo som, algumas canoas foram trocadas por barcos de alumínio e a família, (os que não abandonaram a ilha para viver na cidade), agora grande e habitando puxadinhos no mesmo terreno, passou a viver do turismo no parque; turismo este um pouco controverso, já que não se pode ampliar o espaço de vida dos moradores, mas para o turismo pode.
Não existe nenhuma política do PEIC, do município e nem do governo federal para estimular a visitação da ilha, mesmo que controlada, somente o chamado turismo comunitário, e a região não faz parte de destinos indutores ou qualquer programa governamental. A mais, não existe luz elétrica, sendo que algumas casas e alojamentos mantém geradores ou placas de luz solar. Para se chegar a ilha é necessário alugar uma voadeira ou ir de escuna, cerca de 3 horas ao longo do canal que separa a ilha do continente. Em 2005 não havia pousadas na ilha, somente alojamentos, o que restringia o público-alvo a estudantes ou grupos, atualmente verifiquei a presença de pequenas pousadas residenciais.
O mais crítico é que os moradores do Cardoso não estão sozinhos. O mesmo se repete em locais não tão distantes assim, onde a natureza intocada já nem é mais, como a comunidade quilombola Marambaia, na Baía de Sepetiba (RJ), que recebeu no dia 8 de agosto a mais nova tecnologia: a luz elétrica!
Bom seria se esta fosse a única luta deste quilombo. A luz só chegou para os moradores mais antigos, pois os mais novos não são reconhecidos pela Marinha, que administra a área. Ainda tem de lutar pela regularização de suas terras, mesmo com o reconhecimento do Instituto Palmares e do INCRA, isto porque a Marinha vê no território do quilombo um bom espaço para instalar uma base de submarinos e, para tanto, tenta deslegitimar a comunidade, impedindo a reforma de suas casas e questinando a origem quilombola, sob a alegação de ser uma área de segurança nacional.
Precisamos mesmo é de segurança para nossos povos originários, para a manutenção de sua cultura e para a garantia de sua reprodução, incluindo a preservação do meio e de seu trabalho.
Fontes:
Imagem - Selt
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